Prática vocal na liturgia reformada
No artigo anterior, ressaltamos a importância que o Saltério de Genebra teve para a vida litúrgica da Igreja Reformada, permitindo que a igreja como comunidade de fé participasse do canto nos cultos, e de como esta prática se estendeu até nossos dias. O canto congregacional para nós hoje, graças à visão e esforço de cristãos comprometidos com a proclamação do Reino de Deus, continua sendo uma expressão e afirmação de fé da igreja como povo de Deus.
É importante termos como pano de fundo que a nova igreja que surgia, a Igreja Reformada, se preocupou com a elaboração de sua liturgia e com a estrutura clerical de um modo diferente da prática que vinha acontecendo. A Igreja Romana, preocupada com o movimento da Contra-Reforma, determinou sérias mudanças em sua organização eclesiástica. Uma delas foi a quase abolição da música na liturgia. Assim, aconteceu uma separação na música: a música sacra católica e a música sacra protestante.
Esta divisão entre música católica e música protestante deu origem a formas diferentes de prática da música sacra vocal. No lado protestante, houve um grande impulso na produção de hinos e cânticos específicos para o culto, na forma conhecida como “forma coral”. O Saltério de Genebra foi organizado e pensado nesta perspectiva musical. No lado católico, a polifonia e o estilo contrapontístico apresentado pelo compositor Giovanni Pierluigi da Palestrina (1525-1594), através de uma missa em forma de música intitulada “Missa do Papa Marcelo”, prevaleceu como a forma ideal de música para o culto católico.
O que havia de “ideal” na música de Palestrina? Alguns elementos considerados na época orientaram esta escolha. Eis alguns deles: “pureza, clareza, leveza, misticismo e perfeição técnica”, isto é, perfeição na escrita composicional – a polifonia. Ao mesmo tempo, confrontando este estilo com a prática da música sacra vocal protestante, a diferença estava exatamente na participação do povo durante o culto. Na forma dos corais e hinos protestantes, todo o povo poderia participar cantando. Na forma polifônica, somente clérigos e corais especializados poderiam cantar, devido à extrema elaboração técnica para o canto.
Desta forma, o canto congregacional torna-se um importante elemento de divulgação e afirmação da fé protestante. É preciso lembrar que, antes do movimento da Reforma Protestante, o povo era um mero espectador das cerimônias religiosas. Com o desenvolvimento dos corais religiosos, o povo passa a participar cantando e surge, desta forma, o coral protestante. O texto era adaptado, isto é, metrificado e organizado melodicamente e harmonicamente, e era destinado a ser cantado coletivamente, em uníssono. O canto tornou-se uma expressão de fé a uma só voz, representando toda uma comunidade de cristãos.
Paralelamente ao desenvolvimento do canto congregacional, cresce também a arte vocal chamada “erudita”, grande parte cultivada pelos coros e que tinha a função, em alguns lugares, de ensinar e conduzir a congregação nos cânticos. Muitas práticas foram desenvolvidas como, por exemplo, alternar as estrofes entre coro e congregação ou, ainda, cantar no estilo polifônico típico do período renascentista, onde a melodia principal encontrava-se no tenor. Lembramos também que esta prática extrapolou os muros da igreja e a música erudita sacra ganhou espaço em outros lugares, como as salas de concerto e a corte, sendo utilizada para coroar reis e receber nobres e príncipes.
Esta prática parece caminhar para extremos, isto é, com o desenvolvimento elaborado da polifonia, notou-se que a congregação participava cada vez menos dos cantos e que os corais passaram a exibir suas habilidades vocais, devido à polifonia executada nos hinos.
Surge desta forma o coral congregacional, através de Lucas Osiander, em 1586. Ele harmonizou corais e salmos a quatro vozes destinados à participação da congregação. E esta forma de coral congregacional ainda hoje é praticada em muitas igrejas.
No Brasil, a prática do coral congregacional chegou através dos missionários norte-americanos. A evidência desta prática encontra-se nos vários hinários utilizados até hoje em muitas igrejas no Brasil. Seu formato baseia-se na escrita da forma coral – soprano, contralto, tenor e baixo. Toca-se o hino na forma coral e a congregação canta a melodia em uníssono.
A IPI do Brasil, que hoje adota o hinário intitulado “Cantai Todos os Povos” (CTP), utilizou por muitos anos os “Salmos e Hinos”, cujos direitos autorais pertencem à Igreja Evangélica Fluminense e que foi elaborado pelos missionários Robert Reid Kalley e sua esposa Sarah Poulton Kalley, e continuado pelo filho adotivo do casal, João Gomes da Rocha. O principal intuito de ambos os hinários é o de continuar proporcionando à comunidade de fé uma forma de erguer a voz, expressando e afirmando a fé em Deus cantando.
O canto congregacional é de grande importância para a vida da igreja. A fonte de inspiração para esta prática vocal sempre foi, e deve ser sempre, a Palavra de Deus. Precisamos nos lembrar que a adoração comunitária deve conduzir sempre ao conhecimento de Deus. A condição da participação do povo na liturgia através do canto, conquistada pelos reformadores e que revolucionou a forma de fazer música na igreja, não pode ser perdida e, sim, seguir o ideal da igreja que “sempre se reforma”.
Josely de Moraes Antonio, membro da IPI de Botucatu, SP